Do medo e violência na luta pela demarcação do território Gamela, surge um clamor de paz

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Jacqueline Heluy/Agência Assembleia
13/06/2017 11h28 - Atualizado em 26/09/2018 16h26

Do medo e violência na luta pela demarcação do território Gamela, surge um clamor de paz
Foto original

De pé, em frente à imagem de Nossa Senhora de Fátima sobre a cômoda do quarto, Maria de Lourdes Nunes Borges ora em silêncio. Lentamente, a senhora de 82 anos vai dedilhando as contas do seu terço. Ao terminar a última Ave-Maria, ela fala, em voz alta: “minha Virgem Santíssima, eu lhe peço paz para a nossa comunidade”.

O clamor de Maria de Lourdes à santa de sua devoção não é em vão. Católica fervorosa, há 62 anos ela mora na localidade Santeiro, um pequeno povoado do município de Viana, a cerca de 180 Km de São Luís (MA), no qual habitam aproximadamente 100 famílias, que sobrevivem da lavoura e pequenas criações de peixe. Apenas em poucas propriedades avistam-se algumas dezenas de cabeças de gado.

O falecido marido de Maria de Lourdes foi um dos fundadores de Santeiro e é em homenagem a ele o único colégio do povoado, a Escola Municipal Mariano Borges.                 

Vizinho a Santeiro, localiza-se o povoado Baías, que conta com o mesmo número de famílias e a mesma forma de subsistência.  

No dia 30 de abril deste ano, Maria de Lourdes viu a paz dos dois povoados ser quebrada por um confronto armado entre dois grupos de moradores da própria região, que resultou em 19 pessoas feridas a tiros de espingarda, golpes de facão e pauladas. Quatro tiveram ferimentos graves e um deles por pouco não teve as mãos decepadas.

De um lado do conflito, moradores que se autodeclaram índios da etnia gamela. Do outro, não-índios, entre posseiros, pequenos agricultores e alguns proprietários de fazendas de médio porte. Os dois grupos que, até então, conviviam em harmonia, travam, agora, uma batalha judicial com interesses contrários.

Quarenta e dois dias após o confronto, o clima na região continua tenso. Os moradores autodeclarados índios reivindicam a demarcação do território Gamela que afirmam pertencer aos seus ancestrais. As terras indígenas (cerca de 14 mil hectares) teriam sido doadas pela Coroa Real Portuguesa, em 1759, segundo consta em documentos históricos. A extensão deste território abrange municípios de Viana, Matinha e Penalva.

O primeiro passo para a possível solução do conflito será dado nesta terça-feira (13/6), quando acontece, a partir das 14h, audiência pública na 13ª Vara da Justiça Federal, na ação movida pelo Ministério Público Federal para que a Funai realize estudo sobre o território Gamela.

A audiência contará com a presença dos autodeclarados índios gamela, da Secretaria de Direitos Humanos, Funai, Comissão Pastoral da Terra (CPT), Seccional da OAB/MA, Conselho Indigenista Missionário, Defensoria Pública do Estado e Defensoria Pública da União.

Márcio Diniz/Agência Assembleia
Bajaco chora ao lembrar da ocupação da fazenda; dona Maria de Lourdes ora pedindo paz na região e ao lado da esposa Socorro, Alamilo mostra o título de propriedade registrado em cartório
Bajaco chora ao lembrar da ocupação da fazenda; dona Maria de Lourdes ora pedindo paz na região e ao lado da esposa Socorro, Alamilo mostra o título de propriedade registrado em cartório

VIOLÊNCIA E MEDO

O episódio que resultou em violência com vários feridos, no dia 30 de abril, é chamado ‘retomada de território’. Um grupo de 40 moradores que se declarou índios gamela tentou ocupar uma propriedade com criação de búfalos, denominada Sítio Aires Pinto, de 22 hectares, no povoado Baías. O propósito dos gamelas era retomar para si a área que acham ter direito como ‘terra de índio’.      

A retomada fracassou. Eles já haviam ocupado a fazenda, na qual só se encontrava a mulher do caseiro Carlos Nascimento, conhecido como Bajaco. Mas a notícia correu rápido e o grupo foi surpreendido com a chegada de cerca de 200 homens armados. O desfecho violento foi inevitável.

Bajaco chora ao lembrar da violência que presenciou. Diz que sente medo e quer deixar o povoado, onde pretendia construir a sua casa no pequeno terreno que comprou na redondeza, por R$ 20 mil. “Vou deixar tudo para trás, não tenho mais condições de continuar morando aqui. Não tenho pra onde ir. Não tenho outra profissão, só sei plantar e fazer roça”, disse.

PRECONCEITO E ÓDIO

A partir desse dia, a paz que, até então, existia entre os habitantes dos dois povoados do município de Viana cedeu lugar a xingamentos, ameaças, medo de novos ataques e temor de morte por emboscadas. Até a tradicional reza de casa em casa nas duas comunidades, em louvor a Nossa Senhora, tradição no mês de maio, não foi possível realizar este ano.   

É fácil perceber o clima de animosidade, preconceito e ódio que ganha corpo nos povoados. É perceptível, nas expressões dos rostos e nos diálogos travados com os moradores. Alguns relatam que tiveram propriedades invadidas, cercas cortadas, açudes de peixes destruídos e lavoura queimada. Os moradores atribuem a autoria destas ações aos autodeclarados índios. Os gamelas negam.

O assunto que prevalece nas rodas de conversa entre os moradores é que, na região vianense, não existe índio. Segundo eles, “os que se declaram gamelas são invasores travestidos de indígenas que pretendem expulsar todos os donos das propriedades de Santeiro e Baías para ficar com as terras”.

PROPRIEDADES À VENDA

Dona Maria de Lourdes Borges afirma que jamais imaginou um dia ter que se mudar de Santeiro, mas que, devido ao clima de ameaças e violência, associado ao temor de perder a sua casa, já pensa em vender a propriedade. 

Ela conta que, por várias vezes, teve a cerca de sua propriedade cortada. No início do mês de maio, ela disse ter encontrado várias estacas em formato de cruz enfiadas em seu quintal. E traduziu isso como uma ameaça de morte.      

A situação de Alamilo Matos Cunha, de 82 anos, também é delicada. Ele mora sozinho com a mulher, Socorro, de 78 anos em uma propriedade denominada Fazenda Santa Fé, de seis hectares, no povoado Baías. Ele faz questão de mostrar o título de propriedade já amarelado, que teria sido emitido pelo cartório de Viana há 25 anos.

Pequeno produtor de peixe, Alamilo relata que já foi vítima de invasão de sua propriedade pelos que se declaram índios, mas que não sofreu qualquer tipo de ameaça ou violência. “Eu até servi um cafezinho pra eles e ficamos conversando aqui no terraço. Esses que se dizem índios estavam armados de espingarda, flechas e lanças e me disseram que só querem de volta as terras que acham que é deles”, disse.

Alamilo não saiu da fazenda, mas afirma ter medo que os declarados índios retornem para expulsá-lo da sua propriedade. Também teme que furtem os seus peixes. Ele conta que chegou a passar uma noite inteira acordado com a espingarda na mão vigiando o açude.

Também afirma que desconhece a existência de índios em Viana: “nunca ouvi falar que aqui em Viana tenha existido índio. Isso é só conversa desse pessoal para ficar com as nossas terras”.

Perguntar a um morador de Baías ou Santeiro se é índio ou descendente de índio chega a ser interpretado como uma grande ofensa. Dona Varinta Sousa, de 109 anos, a mais antiga moradora do povoado Santeiro, demonstra indignação quando alguém lhe faz essa pergunta.

Ainda lúcida, Varinta disse que quando criança ouviu falar que Viana tinha “terra de índio”, mas que nunca conheceu nenhum gamela morando na região. Afirma que ela e o marido, já falecido, nasceram e se criaram no povoado Santeiro, mas que ambos não são índios e que acha estranho só agora, depois de tantos anos, os índios tenham aparecido para reivindicar as terras.

“Não sou índia, não tenho cor de índia e nem cara de índia”, responde Varinta, zangada ao ouvir a pergunta.

O mais estranho é que dona Varinta tem nove filhos, alguns morando em Santeiro. Depois que teve início o processo de reconhecimento do território gamela no município de Viana, em novembro de 2014, Evangelista Souza, um dos filhos de Varinta, se autodeclarou índio e está morando na aldeia Cajueiro, que fica a cerca de 500 metros da casa da sua mãe.

Márcio Diniz/Agência Assembleia
Dona Varinta, de 109 anos, a mais antiga moradora do povoado Santeiro. No portão de uma das duas propriedades retomadas, os moradores declarados gamelas mantêm-se vigilantes à presença de estranhos
Dona Varinta, de 109 anos, a mais antiga moradora do povoado Santeiro. No portão de uma das duas propriedades retomadas, os moradores declarados gamelas mantêm-se vigilantes à presença de estranhos

HÁ TEMOR TAMBÉM NA ALDEIA

O medo também está presente entre os declarados índios que habitam as aldeias Cajueiro e Piraí, localizadas no povoado Taquaritua, também em Viana. As duas terras, hoje ocupadas pelos gamelas, foram as primeiras propriedades retomadas desde 2014. Ao todo, foram ocupadas oito propriedades. O sítio Aires Pinto, no povoado Baías, cuja tentativa frustrada de retomada resultou no confronto armado, no dia 30 de abril, seria a 9ª propriedade.

Cerca de 700 moradores declarados índios gamelas mantêm-se reunidos em permanente vigília nas duas aldeias e relatam o temor de que as suas lideranças sejam vítimas de emboscadas ou que membros da tribo sofram atos de violência. Eles cantam, dançam e fazem reuniões para a tomada de decisões conjuntas.

Ninguém entra na aldeia sem permissão das lideranças. Os portões de madeira que antes protegiam a entrada da fazenda, agora são guardados por gamelas que se revezam na função de vigilância. Quando chega algum visitante não-índio, um dos visitantes se desloca ao centro da aldeia para que os líderes autorizem a entrada.    

O conflito alterou a rotina dos moradores das aldeias Cajueiro e Piraí. Por medo, as crianças deixaram de ir à escola no centro do povoado. Agna Gamela diz que o preconceito que a comunidade indígena sofre faz com que muitos moradores da região que, efetivamente, são descendentes dos gamelas, reneguem a etnia.

Ela também reage com indignação quando ouve acusação de que os gamelas querem expulsar os posseiros e pequenos lavradores das terras de Viana. “Isso não é verdade. Estão espalhando essa história para fazer com que os moradores reajam com violência contra nós. Não vamos expulsar quem não tem para onde ir. Queremos apenas que o governo reconheça oficialmente o que é nosso. Queremos a demarcação do nosso território”, disse.

Kraokê Gamela, uma das lideranças, afirma que os índios não usam armas de fogo e o que aconteceu no dia 30 de abril foi um massacre muito bem organizado pelos fazendeiros que incitaram a população a praticar esse ato de violência contra os índios. “Só não houve mortos porque Deus colocou a mão”, afirma.

Ele tenta explicar como ocorreu o processo de aculturamento do povo gamela até ser declarada a sua extinção.  Segundo Kraokê, os bisavós, avós ou pais eram proibidos de falar a língua indígena ou não podiam se assumir índio com medo de sofrer represálias por parte dos fazendeiros que começaram a se instalar na região.

Também afirma que, durante décadas, seus antepassados foram sendo expulsos, pouco a pouco, daquelas faixas de terra demarcadas pela então Colônia, até sobrar apenas uma pequena parte dos 14 mil hectares destinados aos índios pela Coroa.

Kraokê Gamela ressalta que os índios da região de Viana e Matinha foram obrigados a deixar a área, mudaram para povoados maiores e, neste processo, acabaram casando com não-índios. Os mais velhos foram forçados a aprender línguas e costumes que não eram da tribo. A maioria foi registrada nos documentos como pardo ou negro. 

Algumas índias gamelas expõem aos visitantes das aldeias Cajueiro/Piraí as peças de artesanato feitas de palha do guarimã, também tradição que aprenderam com os antepassados.

Márcio Diniz/Agência Assembleia
O menino Akrutxu, de 1 ano e 5 meses, primeira criança gamela registrada em cartório. Na aldeia, as lideranças fazem constantes reuniões, enquanto a  polícia mantém a vigilância na área
O menino Akrutxu, de 1 ano e 5 meses, primeira criança gamela registrada em cartório. Na aldeia, as lideranças fazem constantes reuniões, enquanto a polícia mantém a vigilância na área

SOLUÇÃO ESTÁ NAS MÃOS DA FUNAI

O presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/MA, Rafael Silva, acompanha o conflito na região de Viana desde o início e afirma que não existe nenhuma demanda dos gamelas dizendo qual a extensão da área reivindicada. Segundo ele, a definição do tamanho do território indígena vai depender do trabalho de demarcação a ser realizado pela Funai.

Rafael Silva explica que o documento histórico, datado de 1759, da Coroa Portuguesa, serve para demonstrar a existência dos índios gamelas há mais de dois séculos na região, mas não confirma a extensão, que depende do resultado do trabalho da Funai. “A situação de insegurança é generalizada, inclusive de proprietários, passa pela demora do trabalho do Estado Brasileiro, especificamente o trabalho da Funai”, esclareceu.

Mais de 400 processos de demarcação de territórios indígenas em todo o País tramitam, hoje, na Funai. Essa demora na demarcação da área dos gamelas gera instabilidade na região e preocupa o Governo do Estado, que tomou a iniciativa de bancar os custos para a implantação do grupo de trabalho da Funai, que será responsável pela demarcação.

O Governo do Estado também disponibilizou efetivos das Polícias Militar e Civil para manter a segurança na região de Viana até que haja solução definitiva para o conflito.

O secretário de Direitos Humanos do Estado, Francisco Gonçalves, esteve na aldeia participando de uma reunião, no dia 11 de maio, com a presença dos deputados federais, e reafirmou o compromisso do governo em garantir todo o apoio necessário, inclusive com recursos financeiros, para que a Funai realize o trabalho necessário.  

O povo gamela aguarda com expectativa que a audiência desta terça-feira, na Justiça Federal, seja o primeiro passo para o tão esperado resgate da identidade da etnia, o que resultará na demarcação do seu território. E neste processo, ele comemoram a emissão da Certidão de Nascimento de Akrutxu Trindade Baía Gamela, de 1 ano de 5 meses, primeira criança gamela registrada em cartório.

Do outro lado dos portões da aldeia, os moradores não-índios, principalmente os donos de sítios e fazendas da região, também aguardam o desenrolar dos fatos, na expectativa de que o território indígena não seja demarcado para que não sejam obrigados a sair das suas propriedades.

E, enquanto a tão sonhada paz não chega, o medo persiste. De um lado e do outro.  


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